Nonato Guedes
Esta semana o ministro Dias Toffoli conclui gestão de dois anos à frente da presidência do Supremo Tribunal Federal e parece fora de dúvidas que ele colecionou vitórias na postura de fazer valer o poder moderador do Judiciário para evitar rupturas e preservar a estabilidade da democracia. Toffoli, que será sucedido por Luiz Fux, conviveu com pautas explosivas envolvendo o destino da Lava Jato, a sorte do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os rumos tumultuados do governo do presidente Jair Bolsonaro, um apreciador dos atos de força e apologista de ditaduras. Toffoli sai incólume do ponto de vista de ter conseguido o triunfo do equilíbrio sem perder a autoridade como dirigente da instância mais emblemática do Judiciário. Aplicou um mandamento que costuma entoar: “O papel do Supremo é o de oferecer soluções em momentos de crise”.
Em sua passagem pelo Supremo, quer como ministro, quer como presidente, foi atacado pelos críticos por ter sido indicado ao cargo pelo ex-presidente Lula e, antes disso, ter sido subordinado funcionalmente aos petistas José Dirceu e José Genoíno, ambos condenados e presos por corrupção. Quando questionado em agosto de 2019 pela revista “Veja” sobre essa peculiaridade, Toffoli assim reagiu: “Como eu disse na sabatina, uma vez juiz, a minha função é cumprir a Constituição e as leis do país. É o que eu tenho feito. Tenho a consciência tranquila. O estigma não incomodava e não incomoda. A origem da indicação é uma página virada no momento em que você veste a toga. Trabalhei para o Genoíno e votei pela condenação dele no mensalão. Tenho uma atuação independente e autônoma”.
Há agitadores e incendiários tanto na esquerda que abarca o PT de Lula da Silva e José Genoíno (este, um ex-guerrilheiro do Araguaia na ditadura militar) como na direita e na centro-direita (agrupamentos por onde trafegam o presidente Jair Bolsonaro e alguns dos seus discípulos ilustres). Pairando acima desses pescadores de águas turvas, o presidente Dias Toffoli costurou um pacto entre os poderes que contornou o avanço de um processo de impeachment de Bolsonaro, ardorosamente defendido pelos opositores e, na outra ponta, conteve excessos ou tentações autoritárias do presidente e de figuras do seu entorno, saudosistas da época do AI-5 que vigorou no Brasil na longa noite das trevas, na fase de radicalização que originou cassações, torturas, prisões ilegais e arbitrariedades de todo tipo.
Não é qualquer um que tem condições de desempenhar esse papel de “algodão entre cristais” num instante dramático da vida nacional. Houve casos de autoridades, em momentos históricos, que tentaram apagar o fogo de crises institucionais valendo-se de gasolina. O resultado é que, ao invés de sinalizarem com uma luz no fim do túnel, contribuíram para agravar tensões e para colocar o país na iminência de colapsos que poderiam ser fatais para a sobrevivência do processo democrático, conquistado a duras penas pela sociedade em memoráveis batalhas cívicas que não dispensaram o ambiente das ruas, de onde – no dizer do inesquecível doutor Ulysses Guimarães – emerge uma “voz rouca”. Toffoli foi uma exceção valiosa no contexto.
O ministro confirmou à “Veja” que entre os meses de abril e maio do ano passado o Brasil esteve à beira de uma crise institucional e que sua atuação foi fundamental para pôr panos quentes numa insatisfação que se avolumava. Toffoli não entrou em detalhes mas, conforme “Veja” apurou, a combinação explosiva envolvia uma rejeição dos setores político-empresarial e até de militares ao presidente Jair Bolsonaro. O cenário que se desenhava era preocupante, porque não avançava no Congresso a reforma da Previdência, a principal e mais importante bandeira econômica da administração do capitão da reserva. O governo, por sua vez, acusava os deputados de querer trocar votos por cargos e verbas públicas. O impasse aumentou quando um grupo de congressistas decidiu tirar da gaveta um projeto que previa a implementação do parlamentarismo.
Se o projeto fosse aprovado, Bolsonaro seria transformado numa figura meramente decorativa, um presidente sem poder. Em paralelo, a mídia explorava investigações sobre suposta participação do senador Flávio Bolsonaro em esquema de “rachadinha”, artifício ilegal empregado por políticos para embolsar parte dos salários de seus funcionários. O caldo de cultura para uma crise gravíssima era alimentado por insinuações de conspiração em várias frentes e pela suspeita de focos explosivos gravitando na relação institucional entre poderes e instituições. Militares exaltados buscavam pretextos para um golpe. Foi quando Toffoli entrou em ação.
Estima-se que as principais autoridades da República, incluindo o presidente Bolsonaro, reuniram-se separadamente mais de três dezenas de vezes para resolver impasse quando o caldo ameaçou transbordar. Foi quando se negociou o pacto. Resultado: no Congresso, o projeto do parlamentarismo voltou à gaveta, a CPI da Lava-Toga foi arquivada e a reforma da Previdência se destravou. Os radicais do governo sumiram de circulação. Toffoli mobilizou a polícia contra grupos que pregavam ações violentas contra ministros do Supremo, adiou o julgamento que poderia soltar Lula e concedeu liminar paralisando investigações contra Flávio Bolsonaro. A pacificação foi conquistada, ainda que temporariamente. E este foi um dos grandes méritos de Toffoli, o legalista ideal que espantou crises sem sacrificar a normalidade democrática.