Nonato Guedes
O presidente Jair Bolsonaro não nega suas origens políticas como deputado federal remanescente do chamado baixo clero, um agrupamento fisiológico, conhecido pela prática do “toma lá, dá cá”, na votação de matérias de interesse do governo no Parlamento. Agora mesmo, depois de festejar a decisão do Supremo Tribunal Federal barrando a tentativa de reeleição do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara, Bolsonaro empenha-se com unhas e dentes para eleger o deputado Arthur Lira, do PP-AL, ao comando da Casa Legislativa. Arthur Lira é réu em duas ações penais e, se por acaso, vencesse a disputa na Câmara, ficaria excluído da linha hierárquica de sucessão, não podendo, excepcionalmente, assumir a presidência da República.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu que réus podem até presidir a Câmara e o Senado, mas não estão autorizados, em hipótese nenhuma, a assumir o Planalto. Em depoimento ao jornalista Josias de Souza, do UOL, o ministro Marco Aurélio Mello foi taxativo: “Vamos admitir que seja o Arthur Lira o escolhido para presidir a Câmara, Ele é réu no Supremo. Pode exercer oi cargo de presidente da Câmara, mas será privado de substituir o presidente da República caso seja necessário”. Pela Constituição, o chefe da Câmara dos Deputados é o primeiro da linha sucessória, depois do vice-presidente da República (atualmente, o general Hamilton Mourão, filiado ao PRB). Entretanto, em dezembro de 2016 o STF deliberou que quem é réu está proibido de assumir a presidência da República.
O próximo na linha sucessória é o presidente do Senado – que tem nomes como Eduardo Braga(MDB-AM) e Fernando Bezerra (MDB-PE) como cotados para ascender ao posto na sucessão do atual dirigente Davi Alcolumbre, do DEM-AP. Eduardo Braga é investigado por suspeita de corrupção, enquanto Fernando Bezerra, a exemplo de Arthur Lira, já se encontra no banco dos réus. O Congresso, sem dúvida, vive uma situação inusitada ante a iminência da troca de comando nas duas Casas, pelo fato de que nomes especulados como detentores de chances de vitória não ostentam, propriamente, currículos, mas prontuários, com implicações policiais. O próprio Marco Aurélio, atento às filigranas, exemplificou a peculiaridade da situação que é iminente no cenário institucional brasileiro:
– Se o presidente da Câmara não pode assumir, passa o cargo para o presidente do Senado. Se ele também não puder assumir, passa para o presidente do Supremo. Imagine que o presidente do Supremo se envolva num sinistro (desastre) de automóvel. Suponha que ele vire réu. Também não poderá assumir a Presidência da República.
Josias de Souza recapitula que o precedente que excluiu réus da linha sucessória para presidente da República nasceu de uma ação que teve o ministro Marco Aurélio como relator. No episódio em pauta, Renan Calheiros, do MDB-AL, então presidente do Senado, tinha acabado de ser enviado ao banco dos réus numa ação penal que corre contra ele no Supremo Tribunal Federal. O partido Rede Sustentabilidade pediu à Corte que afastasse o novo réu do comando do Senado. Num despacho liminar (provisório), o ministro Marco Aurélio determinou o imediato afastamento de Renan Calheiros, político conhecido pelo vasto histórico de denúncias envolvendo sua atuação na vida pública, no Estado natal e no país. Depois de decretar o afastamento de Renan, Marco Aurélio mandou o oficial de Justiça avisar ao senador e pediu à então presidente do Supremo, Cármen Lúcia, que submetesse sua decisão monocrática (individual) ao crivo do plenário do Supremo Tribunal Federal.
No desdobramento, Renan Calheiros, que se julgava eminência parda da República – e assim era considerado em altas esferas de poder – testou os limites de sua influência de forma ostensiva, afrontando simplesmente a decisão judicial que fora expedida. Ele se recusou a receber o oficial de Justiça. E, ainda acomodado na poltrona de presidente do Senado, articulou a derrubada da liminar. Produziu-se, então, uma solução que Marco Aurélio chama até hoje de “meia sola”. E explicou: com o plenário desfalcado de duas de suas 11 togas, o Supremo decidiu, por 6 votos a 3, que Renan poderia continuar presidindo o Senado, desde que fosse excluído da linha de sucessão que conduz à poltrona de presidente da República. Um detalhe adicionou à meia-sola uma desmoralização completa. Para salvar Renan, o Supremo teve de ignorar a punição draconiana que impusera a outro réu – Eduardo Cunha, afastado da chefia da Câmara e do exercício do próprio mandato após estar cercado pela Lava-Jato.
Agora, como diz Josias de Souza, é iminente um alto custo de desmoralização caso deputados, senadores e o presidente Bolsonaro insistam em guindar investigados e, principalmente réus, à condição de favoritos na disputa pelo comando das duas Casas do Congresso. É Marco Aurélio, didaticamente, quem arremata: “A possibilidade de substituir o presidente da República é uma deferência que a Constituição presta à Casa Legislativa, não ao cidadão que esteja ocupando momentaneamente o comando. Se o presidente da Casa não pode, pula-se para a Casa seguinte? O sistema não fecha. Depois da meia-sola, vem o jogo da amarelinha. Tempos estranhos….”