Nonato Guedes, com “Veja” e “Época”
O ministro Celso de Mello completou em julho trinta anos de atuação no Supremo Tribunal Federal e está a menos de um ano da aposentadoria na Corte, mas nos últimos dois anos tem se destacado por reações firmes a investidas de militares ou do próprio presidente da República e de seus familiares contra a democracia e os direitos fundamentais. Em fevereiro, o decano do Supremo disparou uma mensagem de celular aos colegas informando ser alvo de “crime de opinião”, típico de “épocas de obscurantismo”. Foi um desabafo a um pedido de impeachment apresentado contra ele na secretaria da Mesa do Senado, pelo fato de Celso de Mello ter votado a favor da criminalização da homofobia. O pedido foi subscrito por onze deputados federais, dos quais dez eram filiados ao PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro. As hostes bolsonaristas deixavam claro que não aceitariam posições consideradas progressistas, nem mesmo na mais alta instância do Judiciário.
Na mensagem aos colegas, Celso de Mello escreveu: “Eis a que ponto chegaram o fanatismo, o obscurantismo, o fundamentalismo e o caráter profundamente retrógrado dos deputados de alguns partidos, como o PSL”. Os parlamentares também pediram o impeachment de outros três ministros pelo mesmo motivo: Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O decano protestou na mensagem: “É crime de hermenêutica”. Nas mãos de Celso de Mello está um dos votos mais esperados do tribunal: dizer se Sérgio Moro foi ou não parcial ao julgar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Promotor de Justiça em São Paulo e assessor jurídico do gabinete de José Sarney, Celso de Mello chegou ao STF indicado pelo próprio, em 1989, num tempo em que ministros da Corte não tinham um décimo dos holofotes que têm hoje, como registrou o jornalista Guilherme Amado em ensaio na revista “Época”.
Amado define assim o perfil de Celso de Mello: “Durante três décadas, acostumou-se a viver sem os holofotes. Nunca teve outro emprego ou fonte de renda de lá para cá. Não frequenta as rodas de poder de Brasília nem teve proximidade com qualquer presidente da República após Sarney. Evita encontrar advogados fora do gabinete e são raras suas entrevistas. Seu passeio nos fins de semana em São Paulo ou em Brasília é em livrarias. Entre goles generosos de café e uma dieta recheada de alguns Big Macs, é notívago e gosta de citar em seus votos as próprias decisões, ora textualmente, ora adaptando e melhorando trechos. Aos 74 anos, Celso de Mello não precisa mais provar nada a ninguém”. Mello viveu a ditadura e carrega a lembrança do preço pago pelo país com o arbítrio, segundo Guilherme Amado. Enquanto promotor, denunciou torturas e outras ilegalidades cometidas pelo regime. “Talvez aí tenha se forjado a preocupação que o leva a ser o único a usar palavras duras para se referir ao que considera ameaças de fardados e de Bolsonaro ao tribunal”, ressalta Guilherme Amado.
Uma das manifestações mais fortes foi contra o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, que, na véspera do julgamento do habeas corpus de Lula, mandou um recado velado ao STF em uma mensagem publicada em sua conta do Twitter. Na ocasião, o decano se impressionou com o silêncio de seus colegas e respondeu na sessão: “Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade”. No período eleitoral, com o crescente ataque ao STF e à Justiça Eleitoral e diante do líder das pesquisas Jair Bolsonaro estimulando a desconfiança na lisura do processo, um coronel reformado ofendeu Rosa Weber, então presidente do TSE. Mello saiu em defesa da colega afirmando que o ataque era “imundo, sórdido e repugnante” e que usava linguagem “insultuosa, desqualificada por palavras superlativamente grosseiras e boçais, próprias de quem possui reduzidíssimo e tosco universo vocabular, indignas de quem diz ser oficial das Forças Armadas”.
No último dia 29, Celso de Mello, que não pode ser rotulado de petista – pelo contrário, condenou petistas no mensalão e na maioria de seus votos nos anos do PT foi contra as teses defendidas por Lula ou Dilma Rousseff – voltou novamente suas baterias contra Bolsonaro, diante da postagem no perfil do presidente no Twitter do vídeo de um leão cercado por hienas, uma delas rotulada como o STF. Em sua mais dura nota, Celso de Mello falou em “atrevimento presidencial” que “parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar no exercício de suas altas funções”. Foi, então, que Bolsonaro recuou.