Nonato Guedes
Não passará em branco o transcurso, amanhã, de 51 anos do Ato Institucional Número Cinco, o famigerado AI-5, um édito de exceção concebido por generais ditadores que governavam o Brasil com a conivência velhaca e interesseira de elites da sociedade civil, que imaginaram se dar bem golpeando a democracia, que já havia sido ferida em 1964 com o golpe do qual emergiu um militar frustrado, Olympio Mourão Filho, auto-cognominado de “vaca fardada”. O apelido foi a contribuição útil que o próprio Mourão ofereceu ao anedotário político-institucional brasileiro, depois de ter entrado na História como o “maluco golpista” que em 64 sublevou tropas em Minas Gerais e partiu para o Rio de Janeiro, precipitando o movimento forjado com o fito de depor o presidente João Goulart.
O AI-5 fechou o Congresso Nacional e legitimou o estado de terror, com prisões absurdas, ilegais e violentas, prática de torturas e desaparecimento de ativistas políticos de oposição, censura à imprensa, artes e espetáculos e cassações de mandatos. Nas palavras do jornalista Hélio Contreiras, em livro intitulado “AI-5 – A Opressão no Brasil”, o estado de exceção foi institucionalizado desde que o Judiciário foi impedido de julgar punições ilegais. Na Câmara Municipal de São Paulo prepara-se evento das forças democráticas para o 13 de dezembro, convocado porque a perspectiva da volta do AI-5 foi cogitada recentemente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes e pelo deputado Eduardo Bolsonaro. O evento será, exatamente, para repudiar o nefasto AI-5, também chamado de “golpe dentro do golpe”, conforme as luzes jogadas pelo livro de Contreiras sobre um período obscuro da história contemporânea do Brasil e de duas nações vizinhas, Argentina e Chile, também sob o impacto da ação de golpistas.
Em prefácio ao livro de Contreiras, o jurista Dalmo Dallari sustenta que o que ocorreu a partir do AI-5 foi um recrudescimento das arbitrariedades e violências, em paralelo com o uso das instituições públicas para o desvio de recursos. Dalmo sugeria que o livro versando sobre aqueles episódios servisse para que o povo brasileiro seja alertado e jamais sucumba aos argumentos enganosos dos que, apresentando-se como defensores da liberdade e dos valores fundamentais da pessoa humana, na realidade buscam a satisfação de suas ambições ou a obtenção de poder para a imposição de sua intolerância. E ensinava Dalmo Dallari, responsável pela Cátedra Unesco/USP de Educação para os Direitos Humanos: “Se há injustiças, corrupção, desgoverno, o caminho legítimo e o único realmente eficiente para a correção desses vícios é o uso dos meios jurídicos previstos na Constituição. Fora do direito o que existe é o arbítrio, é a lei do mais forte e menos escrupuloso, e com base nessa lei jamais será implantada uma sociedade justa, que possibilite a convivência pacífica dos seres humanos”.
Hélio Contreiras observa que seja pelo extremismo, mais verbal do que tático, da era janguista, seja pela maciça frente única que se ergueu do lado oposto – senhoras mineiras, latifundiários, a grande imprensa, o alto clero, a classe média, as multinacionais, os Estados Unidos de Lyndon Johnson e os governadores dos maiores Estados, “era impossível que o rompimento da ordem constitucional, com a deposição de um presidente, não culminasse na situação radical que o AI-5 veio apenas homologar”. O advogado José Gregori nota que é impossível segurar um processo no seu desfecho, quando não foi detido no seu início. “Nos processos históricos, não há o pique das brincadeiras infantis, que estanca ou anula tudo o que veio antes”, ressalta Gregori, também didático.
É de Gregori essa apreciação oportuna: “No Brasil, especialmente na política, ainda perdura a dúvida machadiana: muda o Natal ou mudam as pessoas? No relato de Hélio Contreiras fica claro o quanto a força do poder e o temor de perdê-lo acabam por prevalecer sobre os princípios, as ideias e as convicções. Exatamente por isso os processos políticos, na sua dinâmica, têm tanta força e moldam muito mais as pessoas do que são moldados por elas. No AI-5, a chamada “Revolução de 1964” deseja se manter e se manteve sem ligar para o preço e para as consequências. Aliás, a justificativa do Ato, no seu introito, diz exatamente isso: “(…) o Poder Revolucionário, afirmou que ‘não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará’ e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido”. Gregori qualifica como megadesgraça a interrupção do processo democrático para o mergulho no arbítrio.
No episódio da votação da autorização da Câmara Federal para a cassação do mandato do deputado Márcio Moreira Alves (RJ), acusado de ter ofendido autoridades militares, uma voz levantou-se em meio ao sanatório geral, a do deputado pelo Rio Grande do Norte Djalma Marinho, que era do partido do regime, a Arena, para se indispor contra a tentação autoritária embutida no que viria a seguir. Citando Calderón de La Barca, disse não à cassação de “Marcito” usando as célebres palavras: “Ao rei tudo, menos a honra”. Havia ditadura gemendo no país. Mas havia pessoas dignas como Djalma Marinho, como, hoje, há um coro amplificado pela democracia, não pela ditadura dos AI-5 da vida