A decisão do cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, de determinar que o padre Júlio Lancellotti deixe de transmitir missas ao vivo e suspenda suas atividades nas redes sociais causa perplexidade, tristeza e preocupação. Mais do que uma medida administrativa interna da Igreja, trata-se de um gesto com forte impacto simbólico, especialmente em um país marcado por desigualdades profundas e pela invisibilização cotidiana dos mais pobres.
Padre Júlio não é um sacerdote comum. Há mais de quatro décadas à frente da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, construiu uma trajetória profundamente ligada à defesa da dignidade humana, especialmente da população em situação de rua. Seu ministério é vivido nas calçadas, debaixo de viadutos, nas periferias esquecidas, onde o Estado quase nunca chega e onde a fé, muitas vezes, é o último amparo possível. Silenciar padre Júlio é, na prática, silenciar também essas vozes.
As redes sociais, tão criticadas por alguns setores, tornaram-se para o padre um instrumento pastoral. Foi por meio delas que ele denunciou a violência contra pessoas em situação de rua, expôs políticas higienistas, mobilizou solidariedade e levou o Evangelho para além dos muros da igreja. Em tempos de comunicação digital, negar esse espaço a um sacerdote que o utiliza para anunciar a justiça social e o amor ao próximo parece um contrassenso com a própria missão cristã.
Causa estranhamento, ainda, a possibilidade de afastamento do padre da paróquia onde atua há mais de 40 anos, local que se confunde com a sua própria história de vida e de serviço. Uma decisão dessa natureza, tomada sem transparência pública, reforça a sensação de punição e desautoriza uma atuação pastoral reconhecida nacional e internacionalmente.
É compreensível que haja diálogo interno na hierarquia da Igreja e que determinadas conversas sejam reservadas, como afirmou dom Odilo Scherer. No entanto, quando as consequências dessas decisões afetam diretamente a sociedade e atingem um símbolo da luta pelos direitos humanos, o silêncio institucional deixa de ser prudência e passa a ser omissão.
Defender padre Júlio não é afrontar a Igreja, mas, ao contrário, é defendê-la em sua dimensão mais nobre: aquela que se coloca ao lado dos últimos, que incomoda os poderosos e que se recusa a aceitar a injustiça como algo natural. Em tempos de intolerância, criminalização da pobreza e indiferença social, padre Júlio não deveria ser silenciado. Deveria ser ouvido, apoiado e reconhecido como aquilo que é: um pastor fiel ao Evangelho e à dignidade humana.
