No escritório, ninguém precisava consultar calendário. Bastava acompanhar a tabela do Brasileirão. Se o Flamengo jogasse na quarta-feira, a quinta já vinha com previsão de ausência: 100% de chance de atestado emocional. Era tão certo quanto nascer sol em verão sertanejo.
O protagonista desse ritual era Valmir, um rubro-negro convicto, desses que sabem de cor escalação de 1981 e que têm na alma um hino não oficial: o grito da arquibancada. Valmir era bom funcionário, dedicado, cordial… desde que o Flamengo não tivesse compromisso na noite anterior. Quando tinha, ah, aí era outra história.
A desculpa preferida dele era sempre a mesma: “Peguei uma virose, chefe”. A tal virose tinha nomes conhecidos — Gabigol, Arrascaeta, Bruno Henrique — e sintomas altamente previsíveis: garganta rouca de tanto gritar, dor de cabeça por causa da emoção e um cansaço que só quem comemorou até tarde conseguiria compreender. No fim das contas, era uma doença exclusivamente transmitida pela TV e pela paixão clubística.
Os colegas, claro, já nem disfarçavam. Na manhã seguinte ao jogo, chegavam relatórios, e junto vinha a pergunta:
— O Flamengo ganhou ou perdeu?
— Ganhou — respondia alguém.
— Então hoje ele tá “doente” de alegria.
Ou:
— Perdeu.
— Hoje tá “doente” de tristeza.
E assim seguia o ciclo natural da vida de Valmir: segunda-feira era dia normal, terça tentativa de foco, quarta-feira adrenalina pura, quinta o sumiço, sexta o retorno — com aquela cara de quem lutou uma batalha épica no Maracanã, mesmo que tivesse travado a guerra apenas do sofá.
A diretora do setor, uma palmeirense paciente, já havia tentado conversar. Valmir ouvia, concordava, prometia mudança. Mas bastava a escala do próximo jogo aparecer que ele esquecia tudo. Afinal, compromisso é compromisso: e ser flamenguista, para ele, era profissão de fé.
No fundo, os amigos achavam graça. A única pessoa que realmente se irritava era o estagiário, que sempre precisava cobrir as tarefas de Valmir na quinta. Mas a vida tem suas ironias: num belo dia, o estagiário apareceu com uma camisa do Flamengo recém-comprada.
Valmir sorriu, colocou a mão no ombro do rapaz e disse:
— Bem-vindo ao clube, meu filho. Só não vá faltar amanhã.
O estagiário riu, mas ficou vermelho, como se estivesse sendo iniciado em algum tipo de seita. E talvez estivesse mesmo. Porque torcer, afinal, é isso: um tipo de loucura leve, dessas que não aparecem no atestado médico, mas todo mundo reconhece à primeira vista.
E no escritório, até hoje, continua igual. A tabela do Flamengo segue determinando a escala dos presentes, e todo mundo convive bem com isso. É que, no fundo, todos sabem: existem faltas que a vida perdoa — especialmente quando o juiz apita o início do jogo.
