Começo este texto com uma citação bíblica que, de tão repetida, parece ter perdido o impacto — mas nunca a urgência: “Não julguem e vocês não serão julgados” (Mateus 7,1).
Esperei a poeira baixar para falar sobre o episódio do adolescente que entrou na jaula da leoa, no Parque Arruda Câmara. No dia em que tudo aconteceu, as redes sociais fizeram aquilo que sabem fazer de melhor: um tribunal instantâneo, sem defesa, sem contexto, sem piedade. Cada comentário era uma sentença, cada compartilhamento um dedo apontado.
Bastaríamos nós olhar um pouco ao redor, ou talvez um pouco para dentro, para perceber que a história é mais complexa. É claro que há culpados. A vida desse rapaz já carregava mais feridas do que ele mesmo podia entender: uma família marcada pela doença, uma mãe esquizofrênica, um pai cujo paradeiro se perdeu no tempo. É um enredo de abandono e fragilidade que não começa na jaula, nem termina ali.
Mas no festival de julgamentos que se instaurou, poucos quiseram enxergar isso. Era mais fácil culpar alguém — o parque, os servidores, a família, o próprio menino, Deus, o destino. Na pressa de achar responsáveis, esquecemos de perguntar o que essa história diz sobre nós.
Porque o caso, que viralizou com a rapidez de todas as tragédias modernas, não fala só de um adolescente e de um leão. Fala de uma sociedade doente. Uma sociedade que transforma sofrimento em espetáculo, que se alimenta de indignação instantânea, que comenta primeiro e pensa depois — quando pensa.
Basta percorrer as linhas inquietas das redes sociais: todo mundo vive pronto para julgar o outro, como se a vida fosse um eterno tribunal. Ninguém olha para a própria bagunça, ninguém reconhece a trave escondida no próprio olho.
E enquanto apontamos o dedo, a ferida coletiva se alarga.
Talvez a cena mais triste não tenha sido o menino diante do leão. Triste mesmo é ver o quanto nos tornamos incapazes de oferecer compaixão antes de emitir veredictos.
No fundo, todos nós temos uma parcela de culpa. Não por termos empurrado o rapaz para dentro da jaula, mas por vivermos em um mundo que não soube ampará-lo antes que ele chegasse até lá — e que depois ainda o condenou sem sequer tentar compreendê-lo.
A poeira baixou, sim. Mas a pergunta continua no ar, como um rugido que ecoa: quando foi que desaprendemos a olhar o outro com humanidade?
